Na casa mais bonita e arrumada da floresta, vivia Norma, a codorna. Uma casinha pequena e modesta, mas muito bem cuidada: paredes rosa e canteiros de hortênsias do lado de fora; móveis creme contra paredes verdes do lado de dentro. Norma se orgulhava do esmero com que cuidava da sua residência, em uma das regiões mais tranquilas do bosque.
Cautelosa e um pouco medrosa, a codorna não gostava de circular por outras bandas, preferia o conforto do lar. Mas como morava sozinha desde que saíra do ninho da mãe, ocupava seu tempo livre recebendo convidados em sua casa. Todo dia, se possível, algum animal da floresta dava uma passada na casa de Norma, a codorna.
Fosse Silvia, a serpente, ou Maria, a fedida, que batesse à porta de madeira da pequena ave, a visita em seguida ocorreria sempre mais ou menos da mesma maneira. Norma abriria a porta afobada, pedindo desculpas pela bagunça e por estar despenada, embora a casa sempre estivesse com tudo em seu devido lugar e as penas, lisas e reluzentes. Depois, uma rodada de chá com biscoitos amanteigados, feitos por suas próprias asas em formatos que ela imaginava ser inusitados:
— Veja, hoje fiz esses em forma de estrelas — e ria — Onde já se viu, não é? Biscoitos estrelados — ria mais — Mas é o que eu sempre digo, eu acredito em tudo que é possível. E se é possível, dá pra fazer. E quem é que disse que biscoitos-estrela seriam impossíveis? Claro que não são — e cacarejava.
As visitas, como sempre, fingiam se impressionar e sorriam, com um pouco de dó, mas com a satisfação de comer um delicioso biscoito acompanhado de um chá na temperatura certa. E assim o encontro seguia, conversas leves, para não dizer vazias; algumas delícias, outras risadas e um cacarejo desesperado quando alguma coisa saía do lugar.
Hanna, a rã, se afligiu quando, por descuido, derrubou a xícara ainda cheia de chá, que se espatifou e derramou a bebida quente para todo lado. Na hora, ela viu o olhar de Norma, a codorna, e não soube o que fazer. Não que houvesse algo a ser feito. Norma cuidou de tudo sozinha, limpou rápido como uma lebre e, ao terminar, exclamou com um suspiro:
— Pronto, tudo em ordem!
Hanna nunca mais foi convidada para as sessões de chá. “Não seria mais possível”, dizia a codorna, sem dar mais explicações para quaisquer que fossem os convidados do dia — que sabiam muito bem o que tinha acontecido, mas dissimulavam ignorância.
Se não houvesse intercorrências, o encontro transcorreria bem até o seu calmo fim. A dona da casa mentiria pedindo que ficassem mais e os convidados mentiriam dizendo que gostariam, mas não poderiam. Algumas despedidas longas e repetitivas, com um último discurso da anfitriã nas linhas de:
— O que falta nessa bicharada é acreditar. Tudo é possível e eu acredito em tudo! Claro, não acredito em fadas e nessas bobagens. Mas no restante, acredito em tudo. E tudo. É. Possível. Se dá pra imaginar com os próprios olhos, então pode acontecer. E tenho dito!
E assim, o fim chegava. Os visitantes voltavam para seus ninhos e tocas, e Norma ficava lá, orgulhosa; mais uma recepção muito bem feita. Com a partida, restava só arrumar a casa, deixar tudo nos conformes, para se enrolar na cama e se preparar para o dia seguinte.
Infelizmente, para a codorna, ela não podia viver só dentro do seu pequeno lar. De vez em quando, precisava perambular pela floresta. Preferia fazer tudo o mais rapidamente possível e dando pouca ou nenhuma atenção para os animais à sua volta. Só quando muito obrigada cumprimentava alguém. Todos já estavam acostumados, viam a pequena ave farfalhando por aí, com sua bolsa em que levava tudo que poderia ser necessário (precavida que era), e não se importavam se ela passava com o olhar vazio sem emitir um pio que fosse; focada somente em chegar ao seu destino e voltar para casa o mais rápido possível.
Houve um dia, porém, em que Norma, a codorna, saiu um pouco mais atenta de casa. Seus olhinhos se arregalavam, examinando os cantos e fazendo-a se render a um ou outro tímido olá. Isso porque Marta, a marmota, lhe contara que vira algo de muito estranho há poucas semanas: um comportamento esquisito das formigas, pareciam não querer trabalhar. A resposta para um delírio desses era óbvio:
— Isso não é possível, Marta. Nunca vi uma formiga que não gostasse de carregar folhas sobre a cabeça.
— É possível, sim, Norma. Vi com meus próprios olhos e tudo!
“Faz-me rir”, pensou. Com aqueles olhos que não enxergam um palmo à sua frente mesmo com óculos fundo de garrafa. Aham. Mas a cena aterrorizante não saía de sua cabeça. E não deu outra.
No caminho para ir comprar uma dúzia de ovos, tensa e atenta, Norma olhou para o chão e reparou numa confusão sobre as raízes das árvores. Normalmente, um formigueiro muito numeroso conduzia seu vaivém por ali de maneira precisa e organizada. Contudo, um rufar mostrava que nem tudo estava certo. As filas de formigas pareciam não poder fluir porque no meio delas uma aglomeração as impedia.
Sobre uma trilha que dava acesso à entrada principal do formigueiro, várias formigas de juntavam para... dançar. Cantavam, dançavam e não carregavam folhas ou restos de animais; em vez disso, levavam sobre as cabeças pequenas pedras brilhantes: azuis, furta-cor, vermelhas, douradas. A luz do sol se refletia nos adornos e enfeitava a festa que se formava.
“Não é possível, não é possível, não é possível!”. O pensamento foi explodindo em exclamações audíveis; o terror da ave inflava a zorra ao se misturar aos protestos das formigas soldadas, que tentavam conter a multidão, mas não conseguiam. Mais e mais formigas operárias se juntavam à festa, no auge do verão, quando deveriam estar juntando mantimentos.
Com o pânico estampado na cara, Norma, a codorna, ficou imóvel, sem conseguir acreditar, sem saber o que fazer. Algo assim era impensável. E seu choque se agravou ainda mais quando notou que sobre a folia pairava um par de asas. Brilhantes, transparentes com reflexos em lilás e verde, as asas batiam e purpurinavam ao som da festa. Pareciam ser de algum inseto, mas não tinham dono. Eram duas asas soltas, farreando sobre a multidão.
Já não havia mais voz para sair do bico da codorna. O choque a estupefacia. Ficou lá, mirando o par de asas, deixando de notar que até os soldados pareciam se render e também levantavam pedras e entoavam cantos. A festa formigava por todo lado, as perninhas pipocavam e os corpinhos rebolavam. Sem nem perceber o que fazia, Norma abriu a bolsa, sacou um frasco de vidro vazio, tirou a rolha que o selava e se aproximou com cuidado. Apoiou um pé sobre uma pedra e esticou o corpinho até que zás: capturou as asinhas dentro do frasco, o fechou velozmente, guardou-o na bolsa e foi embora voando. Não ficou para ver os soldados acabarem com a festa e as operárias serem obrigadas a voltar para o trabalho.
Quando chegou em casa, reuniu algumas folhas e galhos do lado de fora, montou um ninho na penteadeira de seu quarto, depositou o par no emaranhado arrumado, o cobriu com uma redoma ovalada de vidro e lá ficou, fascinada.
“Não é possível”, pensava. “Essas asas só podem ser de uma fada. Mas fadas não existem! Onde já se viu!? Uma fada!? Não, fadas não existem”, insistia com seus botões. Mas lá estava o par de asas, batendo timidamente sobre o ninho, hipnotizando Norma, que não ouviu as visitas (antes aguardadas, agora esquecidas) baterem à porta. A codorna continuou a admirar sua descoberta por horas, rindo e cacarejando completamente incrédula.
Poucos dias depois, resolveu que estava na hora de recepcionar novamente algum bicho em casa, os animais da floresta já deviam estar estranhando e ela não queria dar espaço para colocarem os pensamentos fora do lugar. Convidou Marta. Seguiu o protocolo como esperado: comentou da bagunça inexistente, serviu chá e trouxe os biscoitos quentinhos, dessa vez em forma de meia-lua. Não demonstrou nenhum interesse extraordinário sequer e esperou, até que a marmota falou:
— Ficou sabendo? As formigas atacaram novamente. Bem que eu te falei e você não acreditou. Parece que na semana passada elas pararam no meio do expediente e começaram a dançar. A dançar! A coisa ficou grande, foi juntando todo mundo do formigueiro, as soldadas caíram na farra e tudo. Até que foi ficando fora do controle e tiveram que parar. As operárias não gostaram nada, mas não tinha o que fazer. A rainha ficou assustada, sabe? Nunca tinha visto algo assim. Por isso, a toda poderosa decretou um dia do ano pra elas poderem organizar a própria festa, assim desaguam essa vontade e não atrapalham o momento da colheita. Parece que vai ser tudo bem bonitinho, com hora marcada e tudo. Como são organizadas as formigas, né?
Norma fingiu indiferença, mas estava extasiada em saber dos desdobramentos. Olha só o que aquelas asinhas de fada tinham causado. Será que teriam outras por aí fazendo isso também? Depois que Marta, a marmota, foi embora, a codorna passou a noite conversando com as asinhas. Não dormiu, ficou indo de um lado para o outro do quarto, com os olhos vidrados no ninho, pensando onde mais poderia encontrar asas como aquelas. Entre um cacarejo e outro, enchia a bolsa de vários apetrechos que a ajudariam a achar e capturar mais asinhas. E assim começou a sair mais de casa.
Todo dia, visitava um novo formigueiro e... nada. Tudo em ordem. Até levava umas pedrinhas brilhantes e deixava perto das trilhas de formigas para ver se elas se animavam, mas nada acontecia. Voltava para casa com os olhos espiralando e tinha dificuldade de fingir normalidade com as visitas. Por vezes, realmente precisava se desculpar pela bagunça.
Já alguns meses depois que tinha capturado as asas, sentou-se ao lado de um formigueiro e constatou: não acharia outras. Talvez nem aquele primeiro par tinha achado. Talvez fosse tudo uma alucinação. Ficou lá, cabisbaixa, e então... Reparou em um som estalado, como duas espadas se confrontando. Ora, nunca ouvira algo assim na floresta. Tirou de dentro da bolsa um chifre oco e o usou para poder ouvir melhor. Seguiu o som e encontrou, no topo de pequeno monte de terra, dois escorpiões. Mas o que eles faziam chamava a atenção: se ferroavam apaixonadamente.
Suas pinças percorriam um ao outro, apertando com gosto. E os ferrões perfuravam a ponto de causar pequenos assovios das boquinhas de cada um. As picadas eram tantas que os ferrões babavam veneno, para deleite dos aracnídeos.
“Que nojo”, pensou Norma. Nunca havia visto uma cena tão asquerosa. Era realmente hora de voltar para casa. Mas antes que pudesse levantar voo, reparou que algo brilhava na beira do cume do montinho. Um joelho. Um pequenino joelho ajoelhado. Novamente, a codorna sentiu o mundo se derreter à sua volta e tudo o que ela via agora era o joelho. Não importava se os escorpiões jorravam veneno de tanto picar e se os assovios se prolongavam em uma mesma nota. Só queria saber do joelho. Ela sabia que aquela pequenina articulação só poderia pertencer à fada. Tirou da bolsa um lenço de seda, embrulhou o joelho no delicado tecido, amarrou-o em uma trouxa no bico e saiu voando, antes mesmo de um escorpião arrancar a cabeça do outro.
Já em casa, depositou o joelho no ninho sob a abóbada ovalada e dançou desengonçada. Ria e ria de tudo e de si; estava boba que ficou tanto tempo procurando um par de asas quando na verdade tinha que estar procurando um joelho. Um joelho! O que será que ela deveria encontrar a seguir? Não tinha ideia. Isso a aterrorizava, mas não havia mais o que fazer, devia ir atrás dos outros pedaços da fada.
Os meses se passaram e Norma não recebeu mais ninguém em casa. Todos se perguntavam o que estaria acontecendo com a codorna, que agora era vista toda hora vagando pela floresta. Perguntavam como ela estava e quando poderiam comer novamente seus deliciosos biscoitos; ela desconversava. Só pensava na fada e não contaria para ninguém. O que fariam se soubessem que algo impossível como uma fada vagava por aí? Não, só ela saberia da fada, só ela teria a fada e teria que ser rápida para capturar todas as suas partes, antes que mais alguém botasse reparo nelas.
O cotovelo da fada ela encontrou próximo de uma Joana de Barro que enfiava suas garras no pescoço do João. A junta estava apoiada sobre o ninho do casal que se encontrava destruído no meio da grama. Já os dedos da mão ela achou no topo de um cupinzeiro, que teve sua rainha destronada e devorada pelos seus antigos súditos.
Olhos, boca, barriga, coração, esfíncteres, Norma achou pedaço por pedaço da fada e pouco a pouco foi montando seu corpinho. As partes foram se encaixando. Primeiro, ela parecia um monstrinho, torta, capenga, rasgada. Mas, depois, foi ficando graciosa, o que só excitava mais Norma. Passar noites sem dormir se tornou algo normal para ela, que dançava madrugada adentro, gargalhando e conversando com a fada, que não respondia. E quando o sol raiava, se dava conta da bagunça de sua casa, mas não se incomodava e dedicava todas as horas possíveis do dia à sua busca.
Capturou a canela junto de um longo beijo entre dois porcos; já a orelha, pegou sob uma galinha que finalmente alçava voo. Finalmente a orelha. A orelha pontuda era a última parte que faltava. Chegou em casa e encaixou a protuberância elegante, fechou a redoma de vidro e admirou a fada no ninho. Dançou, dançou e... Constatou que havia algo de errado. Não, não estava completa. Faltava alguma coisa. Chorou de desespero como nunca havia chorado. Urrava e suas penas caíam.
Não é possível que ainda não conseguira completar sua fadinha. Um ano já se passara desde que havia encontrado as asas e ainda não tinha terminado de montar a fada. Sem haver alternativas do que fazer, continuou sua busca. Não sabia mais onde procurar, então resolveu que deveria revisitar os lugares por onde já tinha passado; recomeçou pelo primeiro formigueiro.
“Que surpresa”, pensou ao chegar lá na manhã seguinte, pois era o dia do feriado da festa que tinha sido instaurado no ano anterior pela rainha. Que maravilha ver o resultado do poder da fadinha acontecendo. Lá estavam as formigas, dançando com suas pedrinhas. Não pareciam tão animadas quanto no ano anterior, mas estavam contentes. Era uma festa, era um descanso. Sacou seu chifre da bolsa para ouvir melhor a algazarra e atinou com um tictictum que se sobressaia. Tirou, então, uma lupa e foi acompanhar a festa mais de perto quando viu um grupo que vazava para fora da festa organizada.
Era uma história que se repetia, um tumulto que saía do lugar, as soldadas que não conseguiam contê-lo. Seu coração pulou na garganta: só podia ser a fada. Procurou, procurou, mas não achou. “Impossível”, pensou em voz alta. Ela estava lá, a fadinha estava lá. Pegou outra lupa e com uma lente segura em cada asa, sobrepondo-se uma à outra para aproximar sua visão, viu um pequeno brilho que formigava para lá e para cá com a farra, sendo chutado pelas perninhas. Logo entendeu: eram as cutículas da parte interna dos dedões do pé da fada. Norma, a codorna, não segurou a lágrima que escorreu, tirou uma pinça da bolsa, recolheu as duas pelinhas, colocou-as no frasco de vidro e voltou para casa.
Chegou o momento! Suspendeu o ovo de vidro que guardava o ninho, pegou a fada com cuidado e encaixou os pedaços de pele em seus pezinhos. A criaturinha mágica brilhou, bateu as asinhas e Norma teve certeza que agora, sim, estava completa; finalmente tinha terminado de montá-la. Devolveu a pequena graciosa para seu lugar na penteadeira e a contemplou. Nessa noite não dançou, nem riu, nem cacarejou, nem chorou, nem conversou. Apenas olhou e olhou a fada. Estava lá, mesmo sendo tão impossível.
Nas semanas seguintes, não saiu mais e se pôs a arrumar a casa. Sim, foram semanas até deixar tudo em ordem, com longas pausas para admirar a fadinha. E quando seu lar voltou a ser o que era antes, voltou também a convidar a visitas. Ao baterem em sua porta, quase tudo ocorria da mesma maneira.
A recepção ainda era cheia de desculpas desnecessárias, afinal tudo estava um brinco. As conversas continuavam vazias, mais por insistência de Norma, que não dava trela para as notícias que seus visitantes traziam. Silvia, a serpente, contava como as coisas tinham mudado na floresta, mas não sabia direito o quê. Maria, a fedida, desabafava como tudo parecia igual, com exceção das cores, que estavam mais apagadas. Norma, a cordona, não lhes dava ouvidos e servia o chá, que continuava na temperatura perfeita. Mas uma coisa mudara: os biscoitos. Agora tinham formatos diferentes: de nádegas, ou braços, ou narizinhos, ou axilas.
“Estava louca”, diziam os animais. Era o que já especulavam há meses sobre ela, mas ao voltarem a frequentar sua casa e serem obrigados a provar seus biscoitos em formatos asquerosos, concluíram: tinha enlouquecido completamente. O óbvio, então, aconteceu, pararam de visitar sua casa. Não valia mais a pena, os biscoitos davam nojo.
Mas Norma não se sentia sozinha, tinha a fada. Passou a servir chá em pequenas xícaras para ela, em seu ninho, bem como miúdos biscoitos feitos à sua semelhança. A fadinha comia e a codorna dava risada. Passou a servir chá com biscoitos duas vezes ao dia para a fada. Depois, duas vezes ao dia e uma vez à noite. Depois, três vezes ao dia e três vezes à noite.
Quando tudo que fazia o dia inteiro era servir chá com biscoitos, a fadinha já se enjoava. A codorna, então, começou a entuchar goela abaixo da fadinha ombros, estômagos, pés e pescoços amanteigados. A fada engolia e Norma dançava enquanto chorava. Uma engolia, a outra dançava. Uma engolia, a outra ria. Uma engolia, a outra batia as asas. E lá descia uma coluna, um bíceps, uma bochecha.
O sol nascia como de costume, já era a vigésima oitava vez que Norma enfiava uma clavícula amanteigada na boquinha da fada desde o último nascer-do-sol. A fadinha engoliu e olhou para a codorna. Trocaram e sustentaram esse olhar. Sustentaram e sustentaram. O sol subiu e continuaram se olhando. A manhã passou e continuaram se olhando. O meio-dia se foi e continuaram se olhando.
Quando o sol se pôs, Norma tirou a redoma de vidro e pegou a fada com muito cuidado. Olhou para cada parte do serzinho; em cada pedaço que ela tinha encontrado e montado, passou as penas e os pés. Ouriçada, baforou os cheiros da fadinha e encostou a língua em cada canto e buraco da pequena. Ao terminar a curtição, colocou a fada no parapeito da janela, abriu os vidros, tirou um martelo de sua bolsa e bateu. Bateu, bateu, bateu, bateu, bateu, bateu, bateu, bateu, bateu bateu bateu bateu bateu bateubateubateubateubateubateubateubateubateu bateuba teubateu bateuba teuba teuba teuba teu ba teu ba teu ba teu ba teu ba teu ba teu ba teu ba teu ba teu e bateu. Fez a fadinha voltar a ser só pedaços e assoprou forte.
As partes foram embora com o vento gerado pelos pulmões. Primeiro se foram as asas, que aproveitaram o impulso do sopro e bateram para bem longe. Em seguida, foi-se um sorriso, que se afastou como a lua encarando a codorna. Por fim, sobrou um olho. Um único olho castanho da fada. Norma assoprou mais uma vez, mas o olho não foi embora. Ela bateu as asas para fazer mais vento, mas o olho não foi embora.
O olho ficou lá, ficou com ela, olhando para ela. E ela olhando pro olho. E assim o olho se tornou a companhia de Norma, a Codorna, que nunca mais saiu de casa, nunca mais recebeu visitas e nem conseguiu voltar a fazer biscoitos de lua ou estrela. Nem mais de nádegas ou joelhos. Agora fazia só em formato de olho. Foi tomando chá e fazendo olhos amanteigados todos os dias, enquanto pouco a pouco martelava sua casa, destruindo pedaço por pedaço do que antes ela cuidava com tanto capricho.
Tomava chá e comia olhos, sob a vigília da íris castanha; e juntava os pedaços da casa para fazer um ninho. Martelou móveis, paredes, plantas, canos, tudo, pausando somente para chá e olhos. Desmontou toda a casa até fazer um enorme ninho, muito maior do que seu corpo que se encontrava mirrado.
Não tinha mais onde esquentar a água; não tinha mais onde guardar as ervas; não tinha mais onde juntar os ingredientes; não tinha mais onde amanteigar os olhos. Não sobrara nada em que fosse possível viver como antes, mas sobrara todo o seu novo ninho, feito meticulosamente como tudo que ela gostava de fazer. Não se deu conta que não poderia tomar um último chá nem comer um último biscoito; já não se lembrava da última vez que tinha botado algo goela abaixo. Então, cansada, se enrolou no ninho e lá ficou até o olho da fada ir embora.
Que linda fábula!! Eu ri muito mas também fiquei muito reflexiva, melancólica. Os eventos da jornada de Norma são lindos e mágicos: a plasticidade das cenas é inspiradora. A aparição da fada foi de tirar o folego! Parece um desenho animado, um coragem card captor covarde, um episódio secreto com um algo a mais (picância, deleite, curtição, obsessão!). Eu adorei muito, obrigada Are por compartilhar essa história.